sábado, 16 de setembro de 2017

RICK AND MORTY E NOSSA ETERNA NOITE DO EXPURGO


Para quem ainda não assistiu “Rick and Morty”, recomendo que faça isso assim que possível. A série, que é um desenho, funciona muito próxima do que ocorre no seriado “Black Mirror”, que não é um desenho (se você não assistiu essa também, fica uma segunda recomendação), suscitando reflexões sociológicas, antropológicas e filosóficas ao fim de cada episódio.

Apesar de já ter assistido a totalidade das duas primeiras temporadas de Rick and Morty, vez ou outra coloco algum episódio aleatório para ter a oportunidade de refletir algo que tenha passado batido anteriormente. Desta vez o episódio foi “Olha quem está expurgando” (Ou no original: “Look Who's Purging Now”).

Nesse episódio, o avô e o neto acabam indo para um planeta onde os seres escolhem uma noite por ano para o que denominam como “expurgar”. O verbo, segundo o dicionário, tem o sentido literal de “limpar, retirar a sujeira”, no sentido figurado o significado é de libertar-se do que é prejudicial, corrigir ou livrar-se das falhas.


Bem, e como os seres desse planeta fazem isso? Acertou quem pensou em “justiça com as próprias mãos”. Contudo, o episódio não deixa claro que os personagens escolhem esse dia – noite, no caso – para “fazer justiça” (apenas no trecho final), pelo contrário, o que fica evidente é que o ritual é adotado há tanto tempo que perdeu seu sentido e a noite do expurgo se tornou meramente uma ocasião no ano para violência gratuita, para que os seres possam cometer crimes como roubos e assassinatos sem punição, e para que possam libertar seus instintos primitivos.

Ao longo do episódio somos apresentados à triste realidade do planeta que, para manter a paz nos demais dias do ano, mata grande parte de sua população em um único dia. Porém, quando achamos que estamos diante da regra para todos os habitantes do planeta e que se trata de uma mera sociedade fictícia, é trazido a nosso conhecimento que [ALERTA DE SPOILER] apenas os camponeses, os pequenos e médios empresários (estereotipados) e a classe trabalhadora é que participam do expurgo. As classes dominantes do planeta, aristocratas e bilionários, estão em suas mansões na noite do expurgo, isolados e protegidos, com todo conforto e proteção que só o dinheiro pode comprar, brindando durante um jantar para comemorar o sucesso da noite do expurgo.

Assim, agora peço que se atente ao significado da palavra que citei acima: “libertar-se do que é prejudicial, corrigir ou livrar-se das falhas”. Portanto, fica exposto que a noite de expurgar é meramente uma forma de... Vou definir a finalidade com as palavras do próprio anfitrião do jantar da aristocracia do planeta retratado no episódio, que assim propõe o brinde: “A mais um ano bem sucedido do festival! Colocando pobres uns contra os outros por milhares de anos”.

Deu para compreender? A noite de expurgar é uma forma de entreter as classes mais baixas e fazer com que exista uma maneira de controle da população, dando a eles “vilões” e razões para matarem-se entre si, fazendo com que se esqueçam da desigualdade e suas causas, fatores que assolam o planeta e acabam sendo responsáveis por tantas mortes. É uma forma de engenharia social, que é retratado em “Black Mirror” no episódio “Engenharia Reversa” (penúltimo da terceira temporada), onde se trabalha a cabeça do indivíduo a ponto dele estereotipar um inimigo e sentir prazer em eliminar esse inimigo.

Então compreendemos que o episódio não se refere a uma sociedade de um planeta fictício. O episódio é uma crítica a nosso sistema, onde os ricos produzem leis penais (No Brasil, as leis de Direito Penal só podem ser produzidas no Congresso Nacional, portanto, é preciso ser Deputado ou Senador para dizer o que será ou não será crime), ou ainda, quando não são ricos, esses congressistas são eleitos (e manipulados) com dinheiro de empreiteiras, grandes empresas ou graças a interesses de uma classe abastada da sociedade.

Isso não ocorre apenas no Brasil. Nos EUA, o famoso Lobby é até legalizado no Congresso. Mas tratando do Brasil, especificamente, o episódio muito me lembrou o que o jurista Eugênio Raúl Zaffaroni citou em seu livro “Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito”. Não vou me estender mais nesse texto que está demasiadamente longo, mas deixarei um trecho da página 32 da edição de 2006 do livro, que eu mesmo adaptei para ficar mais acessível:

“Os policiais, especialmente a faixa daqueles que põem o corpo em contato com a violência, daqueles que são mortos – e isso acaba sendo considerado um acidente de trabalho no caso deles – Pergunto: De onde eles são selecionados?

Respondo: Da mesma faixa social de quem eles próprios lutam contra! Qual será a técnica de controle dos excluídos? É bastante claro! Os criminalizados, os vitimizados, e também os ‘policizados’ são todos selecionados na mesma faixa social: a CLASSE BAIXA.

A técnica é introduzir contradições e a maior violência no interior da mesma faixa social: menores possibilidades de dialogar; menores possibilidades de esclarecer e de conscientizar; menores possibilidades de se organizar; e, portanto, menores possibilidades de ter um protagonismo político para essas classes.

Os ‘donos do dinheiro’ querem nos dizer: "Fiquem matando-se entre vocês, pobres criminalizados ou ‘policizados’ e não mexam com nós, que somos os 30%, os 25% dos incluídos... Pois enquanto se matam, tudo bem para nós! Aliás, vão ficando menos, o que também é bom, embora tenham uma grande capacidade de reprodução".


Creio que ficou evidente a relação do episódio de Rick and Morty com o texto de Zaffaroni, que expõe as vísceras da sociedade, mostrando como a legalização do porte de armas, a regulamentação do uso e comércio de drogas e a forçada estrutura social que foi imposta ao mundo através de uma cultura de desigualdade para manutenção do poder, acaba sendo a nossa “noite do expurgo”, uma noite que nunca acaba, que mata “criminosos” com prazer, que infelizmente mata nossos policiais como se a farda fosse um alvo que despertasse ódio nos “criminosos”, e que mata inocentes aos montes, dia após dia, nas periferias de nossas cidades.

Enquanto expurgamos ou enquanto cada um dos lados dessa luta comemora a morte de um “inimigo”, as classes abastadas e a aristocracia brinda em suas ilhas ou em mansões cercadas por toda blindagem e segurança que somente quem tem muito (mas muito dinheiro) pode comprar.

No episódio do desenho, a solução proposta foi equipar uma personagem “pobre” daquele planeta com armadura para que ela matasse todos os ricos, no melhor estilo Robespierre com a guilhotina na Revolução Francesa. Mas e no nosso caso, há solução? Entendo que sim, mas atualmente o que nos é apresentado é uma guinada conservadora, com pessoas que dedicam suas vidas para acentuar os fatores que preservam nossa eterna noite do expurgo (o que acabou acontecendo ao fim do episódio, onde as pessoas, ao invés de buscarem um diálogo, resolveram que o expurgo seria uma solução, e provando que não há espaço para um salvador ou salvadora da pátria, e que o caminho teria de ser outro, não o imediatismo, visto que o expurgo estava impregnado na mentalidade da população, como é o caso da nossa sociedade), mas isso é assunto para uma outra hora.

Um comentário:

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